quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Alfabetização obrigatória até os 6 anos. O que estamos fazendo com as nossas crianças?


Secretarias de Educação em diversos municípios brasileiros estão criando metas de alfabetização das crianças no último estágio da Educação Infantil. Em algumas uma delas, 90% das crianças precisam estar alfabetizadas antes de ingressarem no Ensino Fundamental com punições para as instituições de Educação Infantil que não cumprirem a meta. Em outras redes de ensino, foi aprovado no Plano Municipal de Educação, a alfabetização PLENA de crianças de até 6 anos de idade.

Ao nos depararmos com políticas públicas como as descritas acima, é preciso  questionar: que concepções de infância, de alfabetização, de educação estão por trás dessas decisões? O debate sobre a melhor idade para que as crianças saibam ler e escrever plenamente não é recente, mas ultimamente a pressão para que esse processo aconteça cada vez mais cedo tem se intensificado.

A defesa da alfabetização plena (leia-se decodificação do código escrito) antes dos 6 anos, com estabelecimento de metas a serem cumpridas pelas escolas, tem significado que as instituições de Educação Infantil devem privilegiar em seu currículo a linguagem escrita e o aprendizado de sua decodificação.

Diversos institutos de pesquisa, universidades e organizações de defesa dos direitos das crianças se posicionam contra essa prática na ocasião da discussão da Meta 5 do Plano Nacional de Educação - PNE. Na época o debate entre a alfabetização plena das crianças aos 6 ou aos 8 anos de idade estava intenso. No PNE, acabou por ser aprovada a alfabetização plena até aos 8 anos. Esses posicionamentos apontavam para os perigos dessa prática, que desconsidera os ritmos das crianças e desrespeitam o direito à infância. Seguem aqui alguns deles:

Fundação Carlos Chagas:

Rede Nacional pela Primeira Infância:

Ação Educativa:

Movimento Interfóruns de Educação Infantil – MIEIB

Contrastando com essa argumentação, está o Instituto Alfa e Beto na defensa da alfabetização plena das crianças na Educação Infantil. Sob o slogan: “Sucesso na escola, sucesso na vida”, o referido instituto vende sistemas de ensino apostilados voltados para a decodificação do código escrito para redes de educação infantil Brasil afora.
A argumentação em defesa da alfabetização plena na Educação Infantil apoia-se no fato já sabido que o Brasil ocupa um lugar baixo no ranking da educação mundial e que muitas crianças saem do Ensino Fundamental sem saber ler e escrever plenamente. Nesse sentido, defende-se que se as crianças entrarem no Ensino Fundamental já alfabetizadas, a educação brasileira atingirá patamares mais altos e as crianças terão mais sucesso na vida.

Mas o que a alfabetização “plena” na Educação Infantil tem significado para as crianças?

Não é por acaso que as crianças estão cada vez mais agitadas e desestimuladas nas escolas e as práticas de controle e de contenção do corpo infantil cada mais intensificadas. Muitos professores tem apontado a dificuldade de “segurar as crianças (de 3 a 5 anos, às vezes até bem mais novas) para que façam as lições”. Também não é por acaso que as crianças brasileiras estão cada vez mais medicalizadas e nosso país é o segundo em venda de ritalina (remédio para crianças com diagnóstico de hiperatividade).

Aqui, alguns artigos sobre a medicalização da infância no país que demonstram como esse cenário está preocupante no país:
https://scholar.google.com/scholar?q=medicaliza%C3%A7%C3%A3o+na+infancia&hl=pt-BR&as_sdt=0&as_vis=1&oi=scholart&sa=X&ved=0ahUKEwiK6v7HyoPSAhXslVQKHbw0ARAQgQMIGDAA

Não garantir a alfabetização “plena” aos 6 anos significa que as crianças na educação infantil não possam ser alfabetizadas? O que é alfabetização e como se dá esse processo?

Vivemos em uma sociedade em que a cultura escrita está muito presente. As crianças estão em contato cotidiano com esta nos anúncios publicitários, nos ônibus, nas placas de ruas, computadores, folhetos, jornais, revistas, entre outros. Muitas chegam à instituição de educação infantil curiosas e interessadas em saber como se expressar nessa linguagem.
Aponta o Parecer das Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Infantil de 2009:
Também a linguagem escrita é objeto de interesse pelas crianças. Vivendo em um mundo onde a língua escrita está cada vez mais presente, as crianças começam a se interessar pela escrita muito antes dos professores a apresentarem formalmente. Contudo, há que se apontar que essa temática não está sendo muitas vezes adequadamente compreendida e trabalhada na Educação Infantil. O que se pode dizer é que o trabalho com a linguagem escrita com crianças pequenas não pode decididamente ser uma prática mecânica desprovida de sentido e centrada na decodificação do escrito. Sua apropriação pela criança se faz no reconhecimento, compreensão e fruição da linguagem que se usa para escrever, mediada pela professora e pelo professor, fazendo-se presente em atividades prazerosas de contato com diferentes gêneros escritos, como a leitura diária de livros pelo professor, a possibilidade da criança manusear livros e revistas e produzir narrativas e “textos”, mesmo sem saber ler e escrever” (Parecer DCNs, 2009, p.15).

O parecer atenta para a profileração de práticas de alfabetização redutoras e mecânicas, que centradas na decodificação do código escrito (voltadas ao ensino de letras e sílabas soltas), não possibilitam que as crianças possam fruir ou atribuir sentido à utilização da linguagem que se escreve, que é justamente o que tem acontecido quando se exige a alfabetização “plena” antes dos 6 anos de idade.
Sobre o trabalho com a escrita, afirma  Luiz Percival Leme de Brito:
Não pertencer à cultura escrita, numa sociedade que se impõe por ela, é ficar expulso das formas do espaço real de existência e de legitimidade. (...) Mas é preciso ter claro que alfabetizar não é formar no domínio de uma técnica, mas sim pôr a pessoa no mundo da escrita, de modo que ela possa transitar pelos discursos da escrita, ter condições de operar criticamente com os modos de pensar e produzir da cultura escrita. (BRITO, 2005, p. 14) Antecipar o ensino das letras [na educação infantil] sem trazer para o debate a cultura escrita para o cotidiano é desrespeitar o tempo da infância e sustentar uma educação tecnicista (BRITO, 2005, p. 16)

Ou seja, incorporar e transitar entre os discursos escritos é muito mais do que saber as letras e aprender a juntá-las. Vygotsky, no início do século passado, já afirmava isso em seu texto, “A Pré-História da Linguagem Escrita”: Ensinamos as crianças a traçar as letras e a formar palavras com elas, mas não as ensinamos a linguagem escrita. (Vygotsky, 1995, p. 183). A alfabetização é um processo complexo e contínuo que exige que as crianças tenham capacidade de simbolização.
Simbolizar significa que as crianças compreendam que os signos como as letras não significam apenas a escrita do “A” ou do “B”, ..., mas que por trás dessas letras juntas há significado e que para aprendê-los, é preciso que se saiba que significado é esse. Como as crianças aprendem isso? Brincando e desenhando, afirmava Vygotsky. Quando uma criança de 3 anos pega um tapete e transforma em cobertor de boneca, por exemplo, ela está demonstrando que por trás daquele objeto há um significado que vai além do objeto em si. Para ler, escrever, contar, entender o pensamento científico e artístico, as crianças precisam passar por uma série de experiências que lhes possibilitem compreender como esses conhecimentos são construídos e simbolizados, ou seja, o que há por trás deles. Na ânsia de alfabetizar as crianças cada vez mais cedo antecipamos processos.

Mônica Correa nos ajuda a refletir sobre função da educação infantil no mundo das letras ao afirmar:
Não é na educação infantil que a criança se inicia na alfabetização. Esse processo se inicia fora das instituições escolares e, muitas vezes, antecede a entrada da criança nestas. Também não é nessa etapa educativa que a alfabetização se completará. A educação infantil tem como principal contribuição para esse processo que a criança se interesse pela leitura e escrita; fazer com que ela deseje aprender a ler e escrever; e, ainda fazer com que ela acredite que é capaz de fazê-lo. (CORREA, 2010, p. 15)

Se acreditamos que as crianças são sujeitos sociais, produtoras de cultura e que têm como uma característica importante a percepção estética do mundo, as práticas destinadas à elas precisam ser reveladoras desse princípio. Solicitar que “desenhem” e repitam letras, façam cópias e exercícios mecânicos de coordenação motora, por exemplo é desconsiderar essas dimensões do sujeito criança e tratá-la como um objeto que nada tem a dizer e que não pensa sobre o mundo, é submetê-las a ordem dos adultos.
É preciso sempre lembrar que trabalhar com crianças pequenas exige uma escuta profunda, envolve conhecê-las, entendê-las e apoiá-las em suas dúvidas, anseios, descobertas, conquistas e desafios. Aí reside a dimensão do cuidado educativo no trabalho com a infância e que serve de princípio inclusive nas práticas voltadas à linguagem escrita.
Não podemos nos esquecer que o trabalho na instituição da infância tem que ser coerente com o universo infantil e com sua maneira lúdica e estética de construir significados para o que experiência. O direito de ter acesso ao mundo da linguagem escrita não pode descuidar do direito de ser criança - e há muitas maneiras de se respeitarem as duas coisas. (CORREIA, 2010, p. 14).

Por fim, deixo aqui um relatório da Aliança pela Infância no mundo, elaborado por professores de diversas universidades americanas intitulado:  “Crise nos Jardins da Infância: Porque as crianças precisam brincar na escola”, que analisam os impactos das testagens e da escolarização precoce no currículo da Educação Infantil.

No marcador alfabetização desse blog há mais reflexões sobre o processo de escrita na Educação Infantil para quem se interessar, segue o link:

  Fica aqui o meu abraço preocupado, mais esperançoso que educadores da infância se juntem em defesa do direito das crianças viverem suas infâncias na escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental. E que todos – adultos e crianças - possam ser felizes e possam aprender  continuamente sobre o mundo nessa convivência!

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